Mais um copo e ele aparece. Mais um copo de gin, rum, whiskey, bagaço, mais uma rodada de cervejas frescas bebidas à velocidade de uma locomotiva e ele aparece.
Até lá, está tudo bem. O charme surgiu todo ao de cima, toda a lata está ao mais alto nível, com um sorriso de orelha a orelha e um par de palavras bem escolhidas, todo o constrangimento, medos, pensamentos, tudo longe, tudo para fazer esta noite ter um final mais que feliz.
E então aquele copo que não devia ter sido tomado, aquele extra, o acumular de todos os outros que o precederam, um dia mau, uma semana má, os problemas que andavam escondidos nas traseiras de uma mente que se queria dormente, mas não desligada, tudo isto se reúne para finalmente chama-lo.
Falo dele, d’O Outro.
O Outro, aquele sujeito que se parece contigo, quase fala como tu, que até consegue ser divertido, se o humor que O precedeu for bom. Aquele que passa a tomar as decisões todas por ti, e usemos a palavra ‘decisões’ com toda uma ironia que não pode passar despercebida, e que, na sua inconsciência fantástica, destrói toda uma noite.
O Outro é o que Freud descreveu como o nosso Id, todos os nossos desejos, todo o nosso EU mais animal que nenhum de nós devia algum dia conhecer, não houvesse precisamente um motivo para o Ego e o Superego estarem lá a fazer-lhe companhia. Se o Ego és tu, e o Superego a mãe chata que passa a vida a controlar-te, o Id é o cão com alguns meses de idade que quer montar tudo o que lhe aparece à frente.
O Outro é aquele que te vai por a fazer as perguntas mais inconvenientes possíveis, que na altura irá ‘pensar’ serem a coisa mais inofensiva à face da Terra. Ele vai-te fazer dizer coisas que nem tu sabias que pensavas ou sentias. Ele vai-te fazer acreditar que és tu contra o mundo. Ele vai-te envergonhar. Aquela mulher fantástica que estava a adorar-te com meia dúzia de copos em cima? Diz-lhe adeus se O Outro entrar em cena. Se a querias beijar e TALVEZ levar à cama, com tempo, alguma paciência e tato, ele vai querer fodê-la, sem mais nem menos, e, lamento muito, não vai ter qualquer transtorno em dizer-lho. E se tiveres azar, ela vai achar-Lhe imensa graça e fazer-Lhe as vontades. E isso é péssimo. O Outro é um idiota. É o maior idiota que tu alguma vez hás-de conseguir algum dia ser, e só uma idiota ainda maior para o querer. Para não falar no perigo que é deixa-Lo tomar controlo do teu corpo para essas coisas. Não só o raio do idiota não sabe o que está a fazer, assim como não podes confiar nem nas escolhas Dele, nem na sua noção de segurança.
O Outro vai também criar-te os mistérios mais fantásticos e puzzles que nem o Sherlock Holmes quereria meter-se a resolver, e vai presentear-te com todos eles no dia seguinte, quando a ressaca estiver no auge e a tua cabeça estiver a castigar-te a ti em vez que o castigar a Ele. Mas tu mereces, tu é que o chamaste!
E raios partam se não O vais odiar durante pelo menos uma semana, com a vergonha a consumir-te, ainda por cima sem qualquer memória do que Ele fez. Sim, porque não tens como te lembrar do que se passou. Afinal de contas, foi Ele, não foste tu!
Foi Ele que se perdeu e trancou-se duas horas num elevador em vez de estar a divertir-se! Foi Ele que se meteu no meio de um bar a dançar com uma mulher bastante atraente que te queria conhecer o corpo, e, com meia dúzia de palavras, a fez nunca mais te querer falar (palavras essas que não tens como as saber, uma vez que foi Ele quem as disse, atenção). Foi Ele que mandou aquela mensagem estupida a chamar ao teu primeiro verdadeiro amor pelo TEU último nome, naquilo que foi provavelmente a mensagem mais creepy que alguma vez saiu do teu telemóvel. Foi Ele que nessa mesma noite, se derrubou a si mesmo e ficou por terra deitado horas, para depois aparecer do nada, pelo meio de arbustos, no meio do teu grupo de amigos, e se colocou a fazer perguntas à tua amiga e respetivo novo namorado sobre o ex dela, teu amigo, e quis por todos os meios saber porque raio tinham eles acabado. Novamente, em frente ao novo namorado dela!
Foi Ele que por algum motivo achou que, depois de uma noite em que tiveram que te carregar para tua casa (tal era o nível de alcoolémia d’Ele que nem das tuas pernas tinha já controlo), era boa ideia deixar os teus óculos, por segurança, com os convivas que de ti cuidaram, não obstante o facto de estares à porta de tua casa. Ele deve ter pensado que ia fazer merda a subir um misero andar.
Enfim. O Outro. O detestável filho da mãe. Sem ele, terias mais dignidade, melhores noites, e os teus blackouts não seriam a coisa mais assustadora de sempre que te pode acontecer.
Mas raios O partam, que não terias estas histórias para te contarem.
Pedro Brandão